quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

BRUNO BALDAIA - Os posters que temos lá no quarto



A faculdade corresponde aproximadamente à nossa puberdade profissional, quer isto dizer, resolvido durante a escola secundária o problema da puberdade física, é da descoberta e consciência da nossa existência como entidade produtiva que esses anos tratam. Claro que a descoberta do lugar social que encontramos, a sua escolha deve encontrar uma coerência com aquilo que queremos que do exterior nos mova, é causa e/ou consequência desta teia que começamos a desenhar para nós próprios. Temos de facto a possibilidade de nos (re)inventarmos como pessoas e tudo por que passámos torna-se um lugar diferente. Mudamos de amigos, mudamos de gostos, mudamos de sítios, mudamos de hábitos e começamos a pertencer a um mundo outro, um mundo que começamos a enquadrar através de novas referências, quem julgamos que já o habita. A partir daqui esse virá a ser o nosso mundo novo e escolhemos quem queremos que por ele nos guie, nos dê as referências do nosso novo espaço. Escolhemos os nossos novos heróis, aqueles que vão substituir os posters que temos no nosso velho quarto, agora um lugar anacrónico, um tempo que já foi.


Conhecer o trabalho de Rem Koolhaas na faculdade foi talvez o meu primeiro momento de íntima descoberta, quando todo o cosmos parecia fazer sentido. Um arquitecto de um tempo que também já era o meu, que falava de coisas que não me eram distantes, que trabalhava na cidade que eu conhecia, que se entusiasmava com o que eu não tinha ainda encontrado noutros arquitectos. Há uma profunda sensação de propriedade em tal descoberta, uma solidão que deixa de existir. O IJ Plein, a proposta para a Câmara de Haia, para La Villette, o Bijlmermeer, o NAI, o Nexus World de Fukuoka, o Centro de Congressos de Agadir, a Biblioteca de Paris e o ZKM de Karlsruhe encheram-me os olhos da possibilidade de ter encontrado em Koolhaas o lugar que me pertencia. Havia agora avidez. Quantas vezes pensei em roubar o Delirious New York que estava na biblioteca das Belas Artes em francês que achava que só eu lia. Não o percebi na altura como um texto-programa mas mais como uma colecção de excentricidades, um demarcar de um lugar radicalmente autónomo. Foi então que apareceu o Euralille.


As primeiras imagens eram impressionantes. Um equipamento multifuncional colossal definia-se com uns desenhos frágeis (pareciam bic laranja) que tornavam evidente tudo o que nós não conseguíamos fazer, não conseguíamos pensar. O grande ovo compunha-se de três partes que encaixavam as valências diferentes do programa, uma megaestrutura urbana atravessada por estradas que levavam o automóvel a todo o edifício, a cidade como gostaríamos que ela fosse. Imaginar viver aqueles espaços e o prazer de antecipar aquela grande máquina em funcionamento. A cobertura em bacia que tornava todo o edifício um acontecimento formal mas sobretudo era a promessa da vida que poderia acontecer ali que tornava tudo aquilo deslumbrante. Koolhaas recreava-se com uns esquemas que comparavam a escala do seu edifício com a torre Eiffel, o Queen Mary ou o Empire State Building, geria a antecipação como um publicista na posse da next big thing. A energia avassaladora de Corbusier existia agora no meu mundo e no meu tempo, já não era um exercício nostálgico, estava a acontecer, pertencia-nos. Procuravam-se nas aulas os outros iniciados que se saudavam discretamente como os membros do Fight Club de Fincher. Mensalmente corríamos para as livrarias à procura da primeira revista que publicasse as imagens do Euralille construído, era sôfrega a pressa de testemunhar o acontecimento. Até que um amigo aparece com uma revista japonesa, a Kenchiko Bunka, as imagens estavam agora aqui. Esperámos que todos estivessem para abri-la. A revista era totalmente escrita em japonês, sem tradução. Tinha as imagens, nada mais interessava.


Mais tarde Rafael Moneo em “Paradigmas fin de siglo, los noventa entre la fragmentación y la compacidad” discorre com precisão sobre algumas das dúvidas e das oposições que a arquitectura dos noventa trouxe consigo, e se me esclareceu sobre as hesitações de Koolhaas nunca a desilusão que tive com o Euralille foi apaziguada. Claro que as críticas que maltratavam o edifício por incapacidade de métier de Koolhaas eram mesquinhas, gerir uma construção daquela dimensão não se faz com o serralheiro do costume a olhar para os desenhos. A opção pelas soluções industriais era a mais correcta naquela circunstância e não havia oposição por falta de capacidade de bem fazer que não fosse pateta. Naquela imagem ainda de estaleiro o edifício feito de colagens tinha perdido a sua qualidade de ideia/objecto cristalino, aquela bela totalidade, e isso não foi uma fragilidade de projecto, foi uma opção programática. Koolhaas decidiu tomar partido pela fragmentação e demonstrou-o desmontando a mais bela promessa de compacidade que os anos 90 foram capazes de propor (a sua Biblioteca de Paris também entraria neste campeonato) e a dimensão do sacrifício testemunha a dimensão do seu comprometimento. No final o Euralille não era uma obra de arquitectura mas um acontecimento arquitectónico, sempre foi.


Acabou aí o tempo dos posters.


Bruno Baldaia, Arquitecto