sábado, 9 de janeiro de 2010

GODOFREDO PEREIRA - Uma certa dose de delírio

Parece consensual afirmar que a progressiva transmutação de estudante em arquitecto passa sempre por um longo processo de maturação, sedimentado no encontro com as políticas do mundo da construção.

Desde o estágio aos primeiros anos de prática profissional, verificamos que a progressiva compreensão das circunstâncias da arquitectura no terreno, característica dos primeiros anos da carreira, toma a forma da conquista de uma certa maturidade pragmatista, sem espaço para pensamentos “filosóficos” ou preocupações demasiadamente politizadas. Impõe-se como necessária a adaptação rápida às condições específicas de uma profissão cada vez mais tecnocrática - o arquitecto é um profissional que responde a uma encomenda cuja natureza não deve ser questionada, competindo-lhe apenas executar bem. Naturalmente vão ficando para trás as radicalidades exploradas no mundo académico, como vitórias de arquitecturas passadas ou delírios imaturos e irrealistas.
Contudo, verificamos (infelizmente sem surpresa) que ao que se chama maturidade está muitas vezes associada a repetição sem-fim dos mesmos pressupostos e um crescente desinteresse pela apreciação crítica dos paradigmas teórico-projectuais instalados – e que de facto esta maturidade ansiosamente auto-imposta, conquistada talvez demasiado rapidamente, representa quase sempre o abdicar de todas as qualidades inerentes à imaturidade.


Tafuri defendeu que a arquitectura não tem uma operatividade política devido à sua incapacidade tanto de estabelecer como de simbolizar através da forma uma determinada ideologia (‘ideologia do plano’ e ‘ideologia do espaço’), mas com isto não queria dizer que a arquitectura não é atravessada por problemas sociais, económicos ou políticos. O problema levantado por Tafuri sugere que o perigo que os arquitectos têm vindo a enfrentar nas últimas décadas reside na progressiva burocratização a-crítica da profissão. E infelizmente esta maturidade precoce que muitos desejam, não faz mais do que repetir ad eternum o marasmo em que se encontra a disciplina, aproximando-a a passos largos da pura irrelevância.
Assim torna-se cada vez mais importante inventar outros caminhos para reconfigurar a capacidade activista da disciplina, e o principal será sempre a construção desde cedo de um exercício crítico sobre as condicionantes do próprio trabalho, no esforço de não prestar um serviço desinteressado. É uma questão de ética ou de atitude tanto ou mais urgente quanto a decisão consciente de forçar um pensamento crítico activo no campo da arquitectura é um problema que se apresenta logo nos primeiros anos da carreira: Como começar? De que forma? Para fazer o quê?



Este é um processo que obriga à lenta descoberta de um espaço em que acção e pensamento se possam encontrar, na construção de um caminho próprio: pode passar pelo retorno ao ensino para desenvolver uma especialização, um mestrado ou um doutoramento, passa pela participação em projectos editoriais ou por uma aposta em concursos para evitar a ausência de projectos. Mas passará também e principalmente por confrontar o cliente e questionar a natureza e as implicações do programa, e por um permanente exercício de questionamento sobre as condições de existência da arquitectura na contemporaneidade: para que serve, para quem serve, quais as suas implicações, etc.


Torna-se também necessário saber gerir as desilusões. A necessária lentidão dos processos de maturação, contrasta com uma inevitável vontade de reconhecimento e depende muito de uma certa produção delirante para conseguir manter a “máquina” a produzir. Inevitavelmente passará por ser ignorado, por não ser ouvido, por estar preparado para falhar.
Sabemos que é possível construir um percurso crítico sem deixar de construir, nem ter de cair na tentação de falsear uma maturidade que não se tem. Decidir seguir um caminho autónomo não é fácil, nem oferece garantias económicas, mas perante a crescente corporativização da arquitectura, é sem dúvida o grande desafio que os primeiros anos da profissão impõem. Um certo delírio é mais importante que uma precoce maturidade.

Godofredo Pereira, Arquitecto

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comenta